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"As flutuações do valor da língua francesa no mercado das línguas." por Professora Marie-Manuelle Silva

Artigo de Opinião publicado no semanário Vida Económica

Após um período de aparente declínio ao longo da primeira década dos anos 2000, o francês está de volta (O Público, 23 de setembro de 2019). O crescente interesse pelo idioma deve-se, em parte, a uma mudança de imagem. As politicas linguísticas deixaram de se cingir à promoção e difusão da língua francesa, associada exclusivamente à cultura francesa, para abarcar os países da francofonia, isto é, o seu potencial geoestratégico e económico enquanto países promissores no âmbito da globalização.
As flutuações do valor da língua francesa no mercado das línguas inscrevem-se, na realidade, numa longa história em que se sucederam períodos de glória e de declínio, consoante contextos histórico-políticos complexos e heterogéneos.
O francês, mistura de latim popular e de gaulês germanizado pelos francos, fixou-se, enquanto língua, no século XVII. Alcançou desde então, e por razões de ordem diversas, um estatuto de língua universal, principalmente entre o fim do século XVII e a viragem do século XX.


Depois de atingir o seu apogeu no século XVIII, quando as elites europeias nutriam um fascínio tanto pela língua como pela cultura nacional, a reputação do francês manteve-se com a Revolução de 1789, em que foi o veículo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Associado ao lema Liberdade, Igualdade Fraternidade, o idioma serviu paradoxalmente como vetor da expansão colonial no projeto da missão civilizadora levada a cabo por uma política imperial e conquistadora. A universalidade do francês começou, aliás, a ser debatida após os movimentos migratórios em proveniência, nomeadamente, das antigas colónias, numa França pós-colonial e multicultural em busca de uma identidade integradora das novas gerações de descentes de emigrantes. Simultaneamente, a globalização e a imposição do inglês como língua internacional, levaram ao reposicionamento do idioma, agora associado não apenas à nação francesa, mas também aos países da francofonia.
Inventado no século XIX pelo geógrafo Onésime Reclus, o termo francofonia foi recuperado, depois das independências, pelos dirigentes de países africanos e pela França, com o objetivo de manter uma relação de proximidade entre os países que tinham em comum o uso do francês. Na altura, a França país centro da francofonia impunha-se como modelo económico e como norma linguística. Com as dinâmicas policêntricas da globalização e a emergência de novas potências económicas não europeias, a língua francesa desvinculou-se progressivamente da identidade e da cultura francesas, sendo que atualmente, a maioria dos locutores de francês não são franceses e que se encontram espalhados pelos cinco continentes, mais especificamente no continente africano. Com efeito, prevê-se que em 2050, o francês seja a língua (ou uma das línguas) de 8% da população mundial (1 em 12 pessoas) e que, devido ao crescimento demográfico, 85% destes francófonos vivam em África.
Analisadas numa perspetiva diacrónica, as flutuações do valor social atribuído à língua francesa ao longo da história elucidam a aparente travessia do deserto do francês, que estaria a renascer das cinzas, e que corresponde, na realidade, a um momento de reconfiguração do papel do idioma nas dinâmicas contemporâneas do mercado das línguas. Falar francês - como tocar piano, aliás - deixou de ser o apanágio das elites europeias: é doravante uma escolha estratégica num mundo em que dominar várias línguas estrangeiras, para além do inglês, se tornou imprescindível. 

 Nota 1: O Francês está de volta! (Maria de Jesus Cabral, José Domingues de Almeida e Cristina Deschamps). Disponível em: https://www.publico.pt/2019/09/23/sociedade/opiniao/frances-volta-1887023
Nota 2: Ver: La langue française dans le monde (2015-2018), edição de 2019, com prefácio de Michaelle Jean, co-edição Gallimard/OIF, coleção La bibliothèque Gallimard, hors série Gallimard. Disponível em:
http://www.gallimard.fr/Catalogue/GALLIMARD/Gallimard-Education/La-Bibliotheque-Gallimard/Hors-serie/La-langue-francaise-dans-le-monde