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UM BOM EXEMPLO NOS (DES)CAMINHOS DA EUROPA, por Professor Joel Cleto

Artigo de Opinião publicado no semanário Vida Económica

Escrevo estas linhas a poucos dias das eleições para o Parlamento Europeu. A poucos dias de umas eleições que se revestem de extrema importância para um continente onde vêm emergindo ideias e posicionamentos que, bem mais do que populistas, são perigosamente nacionalistas, isolacionistas, quando não mesmo xenófobos e racistas. Ideias que colocam em perigo o projeto europeu que vem sendo edificado nas últimas décadas, de uma Europa pacifista e de progresso assente no respeito e na valorização da diversidade dos seus povos e culturas. Uma Europa solidária, de acolhimento e inclusão, herdeira da sua tradição cristã, mas também dos ideais de liberdade e de solidariedade das revoluções francesa e liberais. Mas, quando pensávamos que algumas práticas e pensamentos estavam ¿esquecidos¿ desde os finais da 2ª Guerra Mundial, ei-los que ressurgem. Porque, como nos lembrava o filósofo, quem se esquece da História está perigosamente condenado a repeti-la.
E é, também por isso, que os Caminhos de Santiago são, hoje, tão importantes. Espaço de livre circulação de pessoas e do pensamento, o Caminho constituiu-se, desde o século IX, como uma das primeiras e efectivas ferramentas na construção de uma identidade comum europeia. E por isso mesmo foi classificado pelo Conselho da Europa, em 1987, como primeiro Itinerário Cultural Europeu, e também a UNESCO, em 1993 e 1998, classificou importantes troços do seu trajecto como Património da Humanidade.
A suposta (re)descoberta em 813 do túmulo do apóstolo Tiago na localidade galega de Compostela irá, a partir daí, convocar os católicos de toda a Europa para este extremo do Velho Continente, convertendo-o num dos lugares de maior importância para a cristandade, criando uma vasta rede de vias de peregrinação: os Caminhos de Santiago. Itinerários do sagrado, junto aos quais se foram multiplicando ao longo dos séculos estruturas de apoio de todo o tipo (mosteiros, conventos, albergues, pontes, hospitais, cruzeiros¿), para lá de veículos de propagação religiosa eles foram também privilegiados meios de difusão de manifestações culturais. Por eles se foi disseminando o românico e depois novas arquiteturas como o gótico. Através deles se difundiram igualmente novas formas de fazer e cantar a poesia e a música, novas formas de expressão artística, outras ideias e ideais¿ Um percurso do sagrado prenhe da constante presença do profano.
Da relevante importância que desde cedo o Caminho assume, já em 1293 nos dá conta Dante ao distinguir aqueles que já eram então os três grandes destinos de peregrinação cristã. O poeta italiano escreverá que, se os que se dirigem para Roma são os ¿romeiros¿ e os que visitam os lugares santos em Jerusalém e na Palestina são os ¿palmeiros¿, os ¿peregrinos¿ são aqueles que rumam para ou de Compostela.
Hoje sabemos que a ¿lenda¿ de Santiago é uma narrativa que se enquadra no processo da expansão territorial da elite guerreira e senhorial asturiana, que se servirá de diversos mitos para alicerçar e legitimar uma ¿reconquista¿ cristã. Independentemente destes factos Compostela converteu-se, ao longo dos últimos mil anos, num incontornável pólo de irradiação de fé e num dos mais relevantes focos congregadores da cristandade. Hoje o Caminho continua a ser percorrido por um grande número que o faz por devoção católica, mas não é menos verdade que se converteu também num espaço ecuménico repleto de espiritualidade e onde muitos também o trilham pelo seu relevante interesse histórico, artístico e cultural. Um caminho que, nestes últimos 20 anos, vem registando um número crescente e surpreendente de ¿caminheiros¿. Onde o espírito de solidariedade, de interajuda, de respeito mútuo e de aceitação e convívio salutar com a diferença são uma das suas grandes marcas distintivas. Um Caminho que pode e deve ser um exemplo para esta Europa algo desorientada dos nossos dias.